Sendo assim, a Filosofia contribui para o conhecimento do fenômeno musical, ou a ela compete apenas desvelar as peculiaridades e dimensões das várias sociedades? Como manter a universalidade e a racionalidade − características do filosofar ocidental − diante desse fazer humano particular e singular propenso aos mais divergentes juízos de valor? Indo mais além, o que é música perante as suas várias defi- nições histórico-culturais? Como podemos transformar a música em um objeto de investigação sabendo da dificuldade em conceituá-la? É possível uma epistemologia da música? A Filosofia da música, para ser Filosofia, deve necessariamente abordar as questões sobre o tempo, espaço, matéria e símbolo, conforme Giovanni Piana aponta em seu livro: A Filosofia da música?1 A esta lista de questões poderíamos somar tantas outras, mas, por ora, está de bom tamanho. É claro que não temos a pretensão de respondê-las neste artigo, mas são caminhos para pensar a relação, muitas vezes conflituosa, entre Filosofia e música.
Todavia, alguém poderá argumentar que ao formular tais questões já estaríamos no universo filosófico. Sendo assim, para sairmos dessa circularidade angustiante, deixemos, momentaneamente, estas dificuldades iniciais em compreender o que é fazer uma filosofia da música para adentrarmos no "pensar música" por alguma abertura que consideramos um fi- losofar. Alguns filósofos como Pitágoras, Arquitas de Tarento, Platão, Aristóteles, Aristóxeno, Santo Agostinho, Descartes, Rousseau e Nietzsche se depararam com o fenômeno musical em suas reflexões e especulações. Citando Platão, a música era parte da sua paidéia, como encontramos na obra A República. Como censor da poesia e das formas de artes que poderiam dificultar a formação de uma cidade justa conduzida por homens virtuosos, também as harmoníai (em uma concepção atual compreendemos este termo como "escala" musical, pois não havia na Grécia Antiga a idéia de "superposição de terças", isto é, acordes musicais) estariam sob o jugo do filósofo, por exemplo, os modos dóricos e frígios e que seriam os recomendados, pois formariam os guerreiros viris. Os modos lídios e jônicos seriam banidos da cidade, pois tornariam os homens efeminados e lânguidos.
OS CANTOS MAIS NOVOS Sócrates - Finalmente, resumindo, faz-se necessário que os responsáveis pela cidade se esforcem por que a educação não se altere sem seu conhecimento, que velem por ela a todo momento e, com todo o cuidado possível, evitem que nada de novo, no que diz respeito à ginástica e à música, se introduza contra as regras estabelecidas, com receio, de que, se alguém disser 'Os homens apreciam mais os cantos mais novos,' vá se imaginar talvez que o poeta se referia não a árias novas, mas a uma nova maneira de cantar, e que disso se faça o elogio. Ora, não se deve nem louvar nem admitir semelhante interpretação, porque é de recear que a passagem a um novo gênero musical ponha tudo em perigo. Com efeito, nunca se atacam as formas da música, sem abalar as maiores leis das cidades, como diz Damon, e eu concordo com ele.
Platão, em A República
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Nando
Araújo é graduado em Filosofia pela Universidade Moura Lacerda,
pós-graduado em Filosofia Clínica (Lato Sensu) pela Universidade Moura
Lacerda. Mestre em Musicologia pelo Conservatório Brasileiro de Música
(CBM-RJ). Professor de Filosofia na Universidade de Ribeirão Preto
(UNAERP) - nandoaraujo@nandoaraujo.com.br
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É bem provável que Platão chegou a essa tipologia musical pela observação do comportamento, do modo de ser de pessoas que faziam uso destas escalas musicais.
Seria assim um preconceito do filósofo em relação aos hábitos e aos costumes de outras culturas? De fato, as especulações platônicas sobre a música tinham propostas ético-educativas sobremaneira rígidas. Um aspecto fundamental para os que se aventuram em uma filosofia da música está na própria concepção que os gregos davam à música. Música era Mousike: um complexo de atividades envolvendo a dança, a ginástica, o teatro, a poesia e o canto acompanhado de aulos e cítaras, portanto, não era uma "arte" autônoma.
Direcionemos este ensaio para uma questão mais específica do pensar música, saindo de uma perspectiva histórica para uma abordagem ontológica e fenomenológica, na qual vimos refletindo há algum tempo. Isso não significa que a concepção musical platônica não nos estimule a outros pensares profícuos. Ao depararmos com uma forma musical qualquer, vários fenômenos estão ocorrendo no momento da audição. Fenômenos internos (como pensamentos) e externos (outros sons percebidos, mas que não participam do fenômeno sonoro-musical ao qual direcionamos a atenção). A música, para muitos, é um fenômeno específico do mundo sensível, todavia, nada a impede que seja somente um fenômeno interno, do pensamento, principalmente em sujeitos onde predomina a abstração. Esta música abstrata para alguns é o suficiente para dar-lhes o prazer que, grosso modo, todos buscam na música. O fato é que estamos, enquanto existentes, diante de sons que são transformados em "música-metáfora" ou em sons sem significados. Questões: o que percebemos em uma audição e de que maneira construímos essa "música-metáfora"? Será que ouvimos sempre a mesma música em uma contemplação sonora? Ora, é óbvio que se tratando de uma música que tenha sido previamente gravada, continuará a mesma, mas, a sua representação, não. Mesmo que não tenhamos muita clareza deste devir da representação musical, ela se faz vigente entre a relação do ser que a percebe e do ser do fenômeno. Nesta perspectiva, o fenômeno musical é um ser-em-si, pleno e sem abertura.
Fonte: Portal Ciência & Vida
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